Crônica, saudando os 20 anos da fundação da organização Palhaços sem Fronteiras.
Quem
viveu o início da década de 90 do século passado, conviveu com um terrível
incômodo nas manchetes internacionais, a Guerra dos Balcãs ou a Guerra da
Yugoslávia. Muita gente nunca tinha ouvido falar naquele lugar, sabia-se,
precariamente, que ficava na Europa e que fora um lugar onde houvera o regime
comunista. Falava-se que era um paraíso habitado por mulheres bonitas e que
também tinha o Rio Danúbio, cruzado por pontes de arquitetura irretocável. Também
se falava nos franco-atiradores, que se posicionavam em prédios para alvejar, a
esmo, a população civil; tiros mortais que feriam crianças, velhos e até
animais de estimação.
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Tortell Poltrona, uma "tortada" de esperança! |
Acordar
com a notícia da guerra na Yugoslávia tornava a “guerra do Rio de Janeiro” mais
suportável, nos anos 90, jovens com menos de 20 anos de idade, matavam, em
assaltos cinematográficos, passageiros de ônibus, que carregavam fotografia dos
filhos e marmita para comer no trabalho. Os bad boys, com tacos de basebol buscavam,
pelas madrugadas, adolescentes que retornavam para suas comunidades. Em vigário
geral, uma gang formada por ex-policiais dizimou dezenas de inocentes. Alguns
meses antes, membros da mesma gang matara crianças de frente para a Santa, na
candelária. E, neste mesmo ano, minha amiga partiu para os Balcãs para ser
Médica sem fronteiras e de lá ganhou mundo, levando a cura e a consciência de
vida.
Em
1993, o palhaço catalão, Tortell Poltrona (Jaume Mateu Bullich ) fez uma
apresentação num campo de refugiados da Yugoslávia para crianças, filhos da
guerra e criou a organização Palhaços sem Fronteiras. Quando soube dessa
notícia, percebi que o rio da vida corria em minhas veias, numa noite de
delírio, imaginei o nobre palhaço, voando da Catalunia, como numa imagem de
Marc Chagal, e aterrissando com suas asas de riso, pelos ermos campos da
Bósnia, driblando os bombardeios com seus imensos sapatos e dando tortada na
cara do Radovan Karadzik ( o então presidente daquele mundo em guerra) Imaginei
Tortell pilotando uma nave azul e as noivas da macedônia acenando para ele,
também com um lenço azul. Tortell invadia meu imaginário enquanto eu chutava
latinhas nas marquises do Rio de Janeiro, pensando, qual seria o próximo lance
de dados que teria de jogar com a vida.
Ainda
nos anos de 1990, vi Tortell Poltrona, num teatro do Rio de Janeiro, sendo
apresentado pelos gestores do projeto Anjos do Picadeiro, entrei anônimo e
sorrateiro para assisti-lo e tive a felicidade de vê-lo dar uma “tortada” na
cara do ator Luiz Carlos Vasconcelos, o palhaço Xuxú, que, inesperadamente,
dividiu a torta comigo e meu rosto, enlameado de ternura, desmanchava-se numa
enxurrada de lágrimas. O rio da vida escorria pelo teatro numa emoção coletiva
até hoje inesquecível.
Tortell
vive e as guerras também. Hoje acordei com a notícia do bombardeio francês no
Mali, notícias de mortes no Afeganistão, civis acuados na Síria, entre tropas
do governo e rebeldes. Na TV filmes de horror profetizando guerras monumentais
entre China, Estados Unidos e Rússia. No quintal de casa, um gato divide “irmanamente”
com minha cachorra Sassá, um espaço numa cesta com paninhos e uma casinha e
dentro de casa meus três gatos afiam suas unhas nas revistas velhas, no jardim,
uma aranha tece uma bela teia e os marimbondos insistem em fazer sua casa em
lugar proibido e... no meu coração, corre o rio da vida.
Jiddu
Saldanha – 15.01.2013