TEATRO PARA DANÇAR

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

O Rio da Vida.

Crônica, saudando os 20 anos da fundação da organização Palhaços sem Fronteiras.

Quem viveu o início da década de 90 do século passado, conviveu com um terrível incômodo nas manchetes internacionais, a Guerra dos Balcãs ou a Guerra da Yugoslávia. Muita gente nunca tinha ouvido falar naquele lugar, sabia-se, precariamente, que ficava na Europa e que fora um lugar onde houvera o regime comunista. Falava-se que era um paraíso habitado por mulheres bonitas e que também tinha o Rio Danúbio, cruzado por pontes de arquitetura irretocável. Também se falava nos franco-atiradores, que se posicionavam em prédios para alvejar, a esmo, a população civil; tiros mortais que feriam crianças, velhos e até animais de estimação.
Tortell Poltrona, uma "tortada" de esperança!
Acordar com a notícia da guerra na Yugoslávia tornava a “guerra do Rio de Janeiro” mais suportável, nos anos 90, jovens com menos de 20 anos de idade, matavam, em assaltos cinematográficos, passageiros de ônibus, que carregavam fotografia dos filhos e marmita para comer no trabalho. Os bad boys, com tacos de basebol buscavam, pelas madrugadas, adolescentes que retornavam para suas comunidades. Em vigário geral, uma gang formada por ex-policiais dizimou dezenas de inocentes. Alguns meses antes, membros da mesma gang matara crianças de frente para a Santa, na candelária. E, neste mesmo ano, minha amiga partiu para os Balcãs para ser Médica sem fronteiras e de lá ganhou mundo, levando a cura e a consciência de vida.
Em 1993, o palhaço catalão, Tortell Poltrona (Jaume Mateu Bullich ) fez uma apresentação num campo de refugiados da Yugoslávia para crianças, filhos da guerra e criou a organização Palhaços sem Fronteiras. Quando soube dessa notícia, percebi que o rio da vida corria em minhas veias, numa noite de delírio, imaginei o nobre palhaço, voando da Catalunia, como numa imagem de Marc Chagal, e aterrissando com suas asas de riso, pelos ermos campos da Bósnia, driblando os bombardeios com seus imensos sapatos e dando tortada na cara do Radovan Karadzik ( o então presidente daquele mundo em guerra) Imaginei Tortell pilotando uma nave azul e as noivas da macedônia acenando para ele, também com um lenço azul. Tortell invadia meu imaginário enquanto eu chutava latinhas nas marquises do Rio de Janeiro, pensando, qual seria o próximo lance de dados que teria de jogar com a vida.
Ainda nos anos de 1990, vi Tortell Poltrona, num teatro do Rio de Janeiro, sendo apresentado pelos gestores do projeto Anjos do Picadeiro, entrei anônimo e sorrateiro para assisti-lo e tive a felicidade de vê-lo dar uma “tortada” na cara do ator Luiz Carlos Vasconcelos, o palhaço Xuxú, que, inesperadamente, dividiu a torta comigo e meu rosto, enlameado de ternura, desmanchava-se numa enxurrada de lágrimas. O rio da vida escorria pelo teatro numa emoção coletiva até hoje inesquecível.
Tortell vive e as guerras também. Hoje acordei com a notícia do bombardeio francês no Mali, notícias de mortes no Afeganistão, civis acuados na Síria, entre tropas do governo e rebeldes. Na TV filmes de horror profetizando guerras monumentais entre China, Estados Unidos e Rússia. No quintal de casa, um gato divide “irmanamente” com minha cachorra Sassá, um espaço numa cesta com paninhos e uma casinha e dentro de casa meus três gatos afiam suas unhas nas revistas velhas, no jardim, uma aranha tece uma bela teia e os marimbondos insistem em fazer sua casa em lugar proibido e... no meu coração, corre o rio da vida.

Jiddu Saldanha – 15.01.2013